Estamos completando esta semana um ano do início da guerra na Ucrânia e com ela presenciamos uma mudança fundamental nas relações internacionais, na economia global, e vimos como o mundo se organizou até então. Em 1989 o célebre e renomado escritor Francis Fukuyama publicava seu artigo “O Fim da História”, que marcava o fim da Guerra Fria e o início de uma dominância internacional das democracias liberais sob a liderança dos Estados Unidos como única superpotência.
Entretanto, infelizmente ele não poderia estar mais errado em suas premissas. Se por um lado vivíamos um momento de exacerbação das ideias das democracias liberais, por outro havia um ‘ovo de serpente’ formando-se com a ascensão da China, a tomada do poder na Rússia por Vladimir Putin e a expansão do poder financeiro das dinastias autoritárias no Oriente Médio.
O mundo hoje se dividiu entre democracias liberais e nações autoritárias, em que ambas utilizam o capitalismo para atingir seus objetivos geopolíticos, expandir sua influência e avançar sobre mercados consumidores e fontes de recursos naturais no planeta. Este é o mundo no qual vivemos hoje e que, há exatamente um ano, viu tal cenário ser confirmado ainda mais.
Há um ano as nações deixaram de colocar as relações comerciais e o desenvolvimento econômico como preocupação número 1. Após a invasão da Ucrânia, em fevereiro de 2022, as nações passaram a colocar a segurança em 1º lugar. A segurança territorial, a segurança cibernética, a segurança energética, a segurança financeira e principalmente a segurança sobre sua capacidade produtiva e seus fornecedores em um mundo globalizado passaram a ser afetadas por diversos fatores alheios ao seu próprio país.
O objetivo de Vladimir Putin de realizar um Blitzkrieg e tomar todo o território ucraniano em poucas semanas foi inicialmente uma derrota vergonhosa e mostrou que o exército russo não era tudo aquilo que o mundo imaginava. Cruzou-se a linha vermelha em que nações como a Estônia, a Moldávia, a Lituânia e a Polônia entenderam que uma derrota da Ucrânia seria o início de uma onda de invasões para outras nações vizinhas, como ocorreu, em 1939, com a Polônia.
Putin não imaginava que seu fracasso ao desejar tomar a Ucrânia geraria uma corrida armamentista tão intensa por parte de todos os países da OTAN, da União Europeia, e se estenderia até o Japão, Taiwan e Coreia do Sul. A possibilidade, até então remota, de uma guerra na Europa, acendeu a luz de alerta de todas as nações que tiveram no passado conflitos territoriais e que passaram a se sentir de alguma forma ameaçadas por nações que se mostram aliadas à Rússia. Essas nações não iriam esperar se tornarem a próxima Ucrânia no cenário internacional.
Ao mesmo tempo em que a ameaça de uso de armas atômicas tornou-se real em palavras vindas do Kremlin, nações como a Finlândia e a Suécia, que não tinham intensão alguma de se associarem à OTAN, por terem proximidade com a Rússia, se viram pressionadas por suas próprias populações a aderir à associação militar. Se a Rússia usou o pretexto da possível entrada da Ucrânia na OTAN para invadir seu território, teve como resposta nações com uma capacidade militar infinitamente superior entrando na OTAN e aumentando suas fronteiras com a aliança ocidental. Outro efeito negativo e inverso da sua própria guerra tornou-se evidente.
Se antes o presidente Donald Trump criticava os membros da OTAN para atingir a meta de 2% do PIB com gastos de defesa, hoje se espera que essa meta seja alcançada antes de 2030, e que ela possa até mesmo ser expandida. Esse conjunto de eventos demonstrou que a invasão da Ucrânia de fato nos colocou em uma nova Guerra Fria e que O “Fim da História de Fukuyama” não era tão final assim.
Os Europeus, bastante divididos a respeito de quais rumos deveriam tomar dentro do Conselho Europeu ou no Parlamento da União Europeia, nunca estiveram tão unidos em vista de seus objetivos. Entendiam e entendem conjuntamente a necessidade de superar sua dependência energética da Rússia, de congelar seus ativos e diminuir o poder dos seus oligarcas. Eles foram capazes de renovar a Aliança Atlântica com os americanos e os canadenses assombrados pelo ‘fantasma’ de uma expansão imperialista na Europa e entendem ainda que não há custo maior para as democracias liberais do que uma derrota da Ucrânia.
Neste contexto, o final de 2022 expandiu o poder militar dos ucranianos. Tanques alemães e americanos de última geração, drones, baterias antiaéreas, armas automáticas e uma incontável quantidade de munições chegam a Kiev todos os dias. As ações das empresas bélicas europeias já subiram mais de 100% no último ano, e as americanas subiram mais de 30% com pedidos semanais pelas nações aliadas. Nesta semana os ingleses convocaram seus aliados a enviar jatos e um avançado sistema militar aéreo para a Ucrânia, o que elevaria a capacidade de defesa na região.
Por outro lado, Putin já recebeu drones iranianos e espera contar com os chineses para receber mais armamentos, o que poderá ser um ponto de inflexão se a China de fato optar por enviar armas aos russos. Isso seria considerado pela comunidade internacional um avanço chinês dentro do conflito, expondo Pequim a incontáveis sanções internacionais. Nesta concepção, esse período de um ano de guerra revelou os verdadeiros interesses das nações enquanto o cenário internacional passa por um rigoroso teste de fogo.
Por um lado, nações desenvolvidas, aquelas consideradas democracias liberais, passam a unir-se em torno da defesa do liberalismo, das liberdades individuais, do sistema democrático e de um modelo de organização social que é o melhor que já existiu até os dias de hoje. Essas nações também já passaram por momentos de guerras terríveis ao longo da sua história e não querem que isso se repita. Nesse grupo temos todos os membros da OTAN, a União Europeia, a Coreia do Sul, o Japão, a Austrália, a Nova Zelândia e até mesmo a Suíça, que historicamente nunca toma lado em conflitos internacionais e passou a congelar ativos russos em seu país.
Do outro lado, nações que têm um baixo ou nenhum índice democrático, mas que utilizam o sistema capitalista liberal como meio econômico para expandir seus interesses autoritários, se mostram a favor da Rússia e concordam com os motivos de Putin para a invasão; são elas a Coreia do Norte, a China, a Venezuela, Cuba, o Irã e a Síria. Essas nações entendem que podem um dia estar na mesma situação e avançar sobre territórios em disputa ou em outros países, por isso visam também a seus próprios interesses.
Também existem as que estão neutras, que possuem interesses nos dois blocos, que condenam a invasão, mas não condenam a Rússia e não apoiaram o uso de sanções econômicas contra Moscou. Há neste bloco um interesse econômico que se choca com a defesa da liberdade e dos princípios basilares das democracias liberais e neles se incluem a Índia, a África do Sul, o Brasil e os Emirados Árabes Unidos, entre outros.
Observamos que é completamente racional essas nações não aderirem às sanções econômicas ocidentais, pois haveria choques econômicos em sua própria população que já sofre com elevada inflação e aumento das taxas de juros advindas da pandemia da Covid-19; ao contrário dos Estados Unidos e da Europa, o impacto monetário seria enorme sem o poder de emitir dólar ou Euro. Isso posto, notório é que precisamos nos questionar até que ponto a omissão de condenar abertamente um ataque dessa magnitude não poderá relegar a essas nações um papel secundário após o fim deste conflito em uma nova configuração geopolítica mundial.
Na economia, tanto a pandemia quanto a guerra na Ucrânia geraram uma brutal desaceleração do processo de globalização, a necessidade de volta dos estoques de fornecedores e insumos. Estamos assistindo às empresas mudarem suas estratégias a nível global. Se antes o capitalismo tinha como base vender pelo maior preço com o menor custo possível, agora a necessidade é de que uma empresa possa continuar vendendo. Pior que produzir um bem por um preço mais alto é ver a fábrica parada por falta de insumos. Neste contexto, as empresas passaram a realocar suas cadeias de fornecedores, entender a necessidade de ter fornecedores mais confiáveis, com relacionamentos geopolíticos alinhados, que possam atender a regiões mais próximas dos seus mercados consumidores finais, e principalmente que dependam menos da China.
Políticas como a China+1 ou a Regional Value Chain passam a se tornar o centro do debate dos empresários. Para atender aos Estados Unidos, nações como o México e o Brasil passam a se tornar centros importantes dessa realocação mundial de fornecedores. Todavia, para isso precisamos criar condições de atrair novos fluxos de investimentos, principalmente com a reforma tributária, com acordos internacionais de comércio e com a consolidação da modernização do Estado. A guerra da Ucrânia mudou a geopolítica e a economia global de uma maneira tão radical que a última vez que isso ocorreu foi em 1945. Neste novo cenário internacional, o Brasil precisa entender que essa é uma oportunidade a qual ele não pode perder. Se por um lado tal mudança pode alavancar a participação do Brasil no comércio internacional e no cenário global, elevando a importância de suas empresas e ampliando as oportunidades de emprego em nosso país, por outro lado se perdermos este momento e o México e outras nações conseguirem aproveitar os frutos dessa mudança, estaremos em uma situação pior do que a que nos encontramos hoje.
Se perdermos esta oportunidade, talvez a próxima ocorra apenas no século XXII.